Cabe inicialmente consignar que o presente texto não tem por objetivo fazer apologia ao voto nulo, nem tampouco condena-lo, mas apenas de esclarecer ao eleitor brasileiro as reais implicações deste, quando do exercício de sua cidadania.
Falar em cidadania é falar em escolha, em decisão. Afinal, o povo é o titular maior dos seus próprios direitos, conforme encerra o parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Em suma, exercer a cidadania é manifestar-se o povo de modo pleno, por todas as formas possíveis, desde que juridicamente respaldadas.
Dentre as formas de manifestação deste poder, está o exercício do voto, como meio de explicitar a vontade majoritária do povo.
Quando a votação ainda transcorria maciçamente por meio de cédulas de papel, bastava o preenchimento inadequado desta, de modo proposital ou involuntário, para que o eleitor tornasse nulo o seu voto.
Com a informatização do pleito eleitoral, foram substituídas as cédulas de papel pelo terminal eletrônico de votação, denominado urna eletrônica.
Ocorre que, do teclado do citado aparelho constam, além de teclas com números, outras indicando opções de "confirma", "corrige" ou "branco". Não existe, pois, a tecla "anula".
Pode parecer ao leitor que tal questionamento não possui qualquer importância, mas assim não é, conforme ficará demonstrado nas linhas seguintes.
Por fatores diversos, que vão da satanização popular desta modalidade de voto até a falta de orientação ao eleitor acerca dos efeitos do voto nulo, esta espécie nunca foi tida, efetivamente, como opção para o eleitor em sua escolha, conforme a seguir demonstramos.
Quanto ao primeiro fator acima mencionado, ocorre que sempre foi incutido na mente do eleitor ser esta espécie de voto um ato de descaso, mas assim não o é. Entendemos ser plenamente possível que um cidadão de bem, consciente da importância de sua escolha, decida por anular seu voto, pois não concorda com as propostas de nenhum dos candidatos.
Quanto ao segundo fator citado, cabe considerar que, embora o eleitor seja levado, erroneamente, à conclusão de que os votos brancos e nulos trarão as mesmas implicações, eles terão efeitos diametralmente opostos, conforme demonstraremos abaixo.
Enquanto os votos em branco serão apenas descartados quando da contagem do total, os votos nulos poderão ter efeitos surpreendentes para a maioria das pessoas: o de causar a nulidade do pleito eleitoral e a realização de um novo.
Dispõe o artigo 224 do Código Eleitoral:
Art. 224. Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do País nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais, ou do Município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações, e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias.
1º Se o Tribunal Regional, na área de sua competência, deixar de cumprir o disposto neste artigo, o Procurador Regional levará o fato ao conhecimento do Procurador-Geral, que providenciará junto ao Tribunal Superior para que seja marcada imediatamente nova eleição.
2º Ocorrendo qualquer dos casos previstos neste Capítulo, o Ministério Público promoverá, imediatamente, a punição dos culpados.
Basta simples leitura do caput do artigo acima para compreender que se mais da metade dos votos em eleição majoritária forem nulos, aquele pleito restará prejudicado, sendo necessária à convocação de novas eleições.
Poderia ser questionada também quanto a eventual incompatibilidade desta norma com o disposto no artigo 77, § 2º de nossa Carta Magna, que dispõe:
Art. 77. A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República realizar-se-á, simultaneamente, no primeiro domingo de outubro, em primeiro turno, e no último domingo de outubro, em segundo turno, se houver, do ano anterior ao do término do mandato presidencial vigente. (Redação da EC nº 16/97)
(...)
2º - Será considerado eleito Presidente o candidato que, registrado por partido político, obtiver a maioria absoluta de votos, não computados os em branco e os nulos.
A citada incompatibilidade estaria no fato da norma Constitucional não fazer qualquer ressalva à quantidade de votos nulos na eleição presidencial, apenas mencionando que estes não serão computados no total.
Neste ponto, já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, para distinguir que se tratam de dois momentos distintos de avaliação dos votos nulos do pleito. Na primeira oportunidade, verifica-se o percentual destes: caso seja inferior à metade do total, passa-se à exclusão destes do total, nos termos do artigo 77, § 2º da Constituição da República.
Cumpre trazer à baila a citada decisão:
"Eleições majoritárias: nulidade: maioria de votos nulos, como tais entendidos os dados a candidatos cujo registro fora indeferido: incidência do art. 224 do Código Eleitoral, recebido pela Constituição.
O art. 77, § 2º, da Constituição Federal, ao definir a maioria absoluta, trata de estabelecer critério para a proclamação do eleito, no primeiro turno das eleições majoritárias a ela sujeitas; mas, é óbvio, não se cogita de proclamação de resultado eleitoral antes de verificada a validade das eleições; e sobre a validade da eleição — pressuposto da proclamação do seu resultado, é que versa o art. 224 do Código Eleitoral, ao reclamar, sob pena da renovação do pleito, que a maioria absoluta dos votos não seja de votos nulos; as duas normas — de cuja compatibilidade se questiona — regem, pois, dois momentos lógica e juridicamente inconfundíveis da apuração do processo eleitoral; ora, pressuposto do conflito material de normas é a identidade ou a superposição, ainda que parcial, do seu objeto normativo: preceitos que regem matérias diversas não entram em conflito." (RMS 23.234, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 20/11/98).
O fato é que a norma eleitoral não afronta a Lei Maior; ao contrário disso, relaciona-se com esta em perfeita relação simbiótica.
Verificada a nulidade de mais da metade das cédulas, como já mencionado, haverá que ser realizada nova eleição.
"Mas não é mera repetição da votação: dar-se-á início a novo processo eleitoral, inclusive com a escolha, pelos partidos, de candidatos diferentes para concorrer ao cargo almejado".
Ora, caso apenas fossem realizadas novas eleições, com iguais candidatos, seria criado um impasse e, provavelmente, nenhum efeito teria esta nova eleição, visto que o povo já manifestara sua vontade e haveria de manifestar novamente, ou seja, a nova eleição também seria acometida de nulidade em mais da metade de suas cédulas.
Por conta disso é que devem ser novamente escolhidos pelos partidos novos candidatos para concorrer ao pleito. Assim já decidiu o tribunal Superior Eleitoral:
MANDADO DE SEGURANCA. NULIDADE DA VOTACAO. RENOVACAO DO PLEITO.
1.IDONEIDADE DO WRIT PARA IMPUGNAR ACORDAO REGIONAL QUE, DEIXANDO DE DECLARAR A NULIDADE DA ELEICAO MUNICIPAL NOS TERMOS DO ART. 224 DO CE, OFENDEU DIREITO LIQUIDO E CERTO DO PARTIDO IMPETRANTE DE CONCORRER A UMA NOVA ELEICAO.
(...)
3.OS CANDIDATOS A NOVA ELEICAO SERAO LIVREMENTE ESCOLHIDOS PELAS CONVENCOES MUNICIPAIS DOS PARTIDOS INTERESSADOS, DEVENDO O PROCESSO DE REGISTRO E IMPUGNACAO SUJEITAR-SE AOS PRAZOS FIXADOS NAS INSTRUCOES EXPEDIDAS PELO TRE.
(Relatora JOSÉ MARIA DE SOUZA ANDRADE- Mandado de Segurança nº601- BEL - Boletim Eleitoral, Volume 387, Tomo 1, Página 35- DJ - Diário de Justiça, Data 24/06/1983, Página 1)
Não podemos deixar de lembrar que a nulidade mencionada no dispositivo eleitoral anteriormente referido pode ser obtida por outros meios, além do denominado voto nulo (nulidade da cédula) pelo eleitor.
Tal nulidade dos votos pode advir, por exemplo, de práticas ilegais de candidatos, como na captação de sufrágio. Para elucidar, colecionamos o artigo 41-A da Lei 9504/97 logo abaixo:
Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinqüenta mil UFIR, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990.
Nessa linha, serão também considerados nulos aqueles votos atribuídos a candidatos que tenham sua candidatura impugnada ou eivada de vícios. Assim já decidiu o Egrégio Tribunal Superior Eleitoral:
Recursos especiais. Procedência. Representação. Captação ilícita de sufrágio. Art. 41-A da Lei nº 9.504/97. Cassação. Registro. Candidato. Determinação. Renovação. Eleições. Art. 224 do CE.Alegação. Exigência. Diplomação. Segundo colocado. Descabimento. Anulação. Superioridade. Metade. Votação. Alegação. Ausência. Prequestionamento. Matéria. Referência. Renovação. Eleições. Alegação. Violação. Art. 415 do CPC. Improcedência.
(Relator CARLOS EDUARDO CAPUTO BASTOS- RESPE 25289- DJ - Diário de Justiça, Volume 1, Data 18/11/2005, Página 70)
Retomando o raciocínio anterior, o fato é que, detectada a nulidade de mais de metade do total de votos em eleições majoritárias, deverá ser realizado novo pleito no prazo assinalado no artigo 224 do diploma eleitoral.
Esta medida demonstra a preocupação do legislador quanto à necessidade de prevalecer a vontade da maioria. Se assim não o fosse, certamente bastaria que escolhessem simplesmente entre os mais votados, ou que, em havendo qualquer irregularidade com o candidato mais votado, fosse diplomado o segundo colocado.
Como bem afirmou o Ministro Humberto Gomes de Barros, que "a realização de nova eleição, no caso do art. 224 do Código Eleitoral, não é penalidade contra o segundo colocado no pleito anulado, mas um imperativo legal, destinado a evitar que a minoria assuma o poder".(RESPE 25402 de 06/12/2005).
Como objetivo precípuo deste texto, ilustradas diversas espécies de nulidades possíveis, manteremos o foco na nulidade das cédulas provocada pelo eleitor.
Como outrora dito, quando do pleito com cédulas de papel, bastava o preenchimento incorreto desta (com a marcação de dois candidatos simultaneamente ou rabisco em local impróprio, por exemplo), para que ficasse caracterizado o voto nulo.
Assim dispõe o artigo 175, § 1º do Código Eleitoral pátrio:
Art. 175. Serão nulas as cédulas:
(...)
1º Serão nulos os votos, em cada eleição majoritária:
I - quando forem assinalados os nomes de dois ou mais candidatos para o mesmo cargo;
II - quando a assinalação estiver colocada fora do quadrilátero próprio, desde que torne duvidosa a manifestação da vontade do eleitor.
(...)
Pois bem, urge questionar se acaso ainda seria possível ao eleitor "anular" seu voto nos mesmos moldes.
Embora não exista qualquer botão para que seja expressamente anulado o voto, a despeito do que ocorre com o voto em branco, será possível ao eleitor que anule seu voto, bastando que digite número não cadastrado para algum candidato e depois pressionando a tecla confirma.
Assim dispõe o artigo 175, § 3º do diploma eleitoral brasileiro:
Art. 175. Serão nulas as cédulas:
(...)
3º Serão nulos, para todos os efeitos, os votos dados a candidatos inelegíveis ou não registrados.
Ante todo o exposto, fica claro que o tratamento dispensado ao instituto da nulidade das cédulas eleitorais foi substancialmente descaracterizado com a implementação da votação por meio eletrônico.
Entendemos que não há razão jurídica de ser deste tratamento, uma vez que, com o advento da Urna Eletrônica, houve a substituição da cédula real (de papel), por uma cédula virtual (no teclado e tela da urna).
Assim sendo, todas as possibilidades de voto para o eleitor deveriam ter sido mantidas, incluindo-se também um dispositivo (botão) para que, acaso desejasse, atribuir ao seu voto o caráter de "Nulo".
Fazer a democracia acontecer não se restringe apenas a escolher dentre os candidatos que se dispuseram a concorrer, mas em manifestar o eleitor integralmente a sua opinião, desde que de modo juridicamente admissível.
É fato que a inexistência de mecanismo explícito de escolha de nulidade da cédula pelo eleitor, aliada à falta de esclarecimentos por quem de direito quanto aos efeitos deste, tornam esta possibilidade quase que letra morta.
Com isso, esperamos ter demonstrado que a nulidade da cédula eleitoral, ao contrário de abstenção do dever e direito de escolha, pode ser meio de decisão, devendo, pois, ser respeitado como tal.